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A natureza da Selic na repetição de indébito
Ganha cada vez mais força uma importante tese tributária, que já teve repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (leading case: RE 1063187), com chances de êxito bem razoáveis. Trata-se da não incidência de Imposto de Renda (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre a taxa Selic nos valores recebidos na repetição de indébito tributário e no levantamento de depósito judicial.
A Procuradoria-Geral da República (PGR) já se manifestou nos autos de forma contrária por entender que “é constitucional a cobrança de IRPJ e CSLL sobre a Selic paga a título de juros moratórios em decorrência do indébito tributário, tendo em vista o incremento de riqueza nova ao patrimônio do contribuinte”.
Cremos que o entendimento está equivocado. Deve sim ser afastada a incidência do IRPJ e da CSLL sobre a porção referente à taxa Selic recebida pelo contribuinte na repetição de indébito. São várias as razões que nos conduzem a esta conclusão.
O principal argumento da PGR repousa na suposta natureza remuneratória – e não indenizatória – dos juros apurados pela Selic porque “os valores pagos a título de juros de mora incidentes sobre o indébito tributário espelham acréscimo patrimonial, pela razão de se destinarem a ressarcir o credor pela indisponibilidade do seu capital”.
Entende também a Procuradoria-Geral da República que “a penalidade pela impontualidade do ente devedor e o ingresso de novos valores à soma de bens do credor tem natureza de verdadeira riqueza nova”.
Com esses dois argumentos principais, a PGR afasta o caráter puramente indenizatório da Selic, para entender que a remuneração sobre o indébito tributário não seria uma mera recomposição do patrimônio do credor – que ficou sem a disponibilidade daquela quantia por determinado período -, mas sim uma espécie de remuneração pelo capital coercitivamente investido junto ao Tesouro.
De fato, a taxa Selic não pode ser acumulada com qualquer outro índice, seja ele de juros ou correção monetária. A questão já foi julgada pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no REsp 1.111.189-SP, fixando o entendimento de que essa taxa tem dupla natureza, juros de mora e correção monetária. Este seria o principal motivo da impossibilidade de cumulação.
A leitura apressada do acórdão do STJ poderia levar ao entendimento equivocado de que o assim denominado componente remuneratório da Selic seria tributável, enquanto o componente de correção monetária não o seria. Ocorre, entretanto, que é impossível fazer esta separação.
Basta ver que o próprio Código Civil, em seu artigo 406, define que a taxa Selic como juros moratórios, ou seja, aqueles que se originam do inadimplemento do devedor em cumprir a obrigação convencionada ou decorrente de lei, no prazo, lugar e/ou forma estabelecida, seja esta uma obrigação de dar ou de fazer. Exemplos de juros moratórios podem ser encontrados no artigo 404 do Código Civil, que trata dos critérios de pagamento e correção das perdas e danos.
Não se pode perder de vista, portanto, que por melhores que sejam os argumentos da PGR e por mais que a distinção entre juros moratórios e remuneratórios nem sempre seja tão nítida ou perceptível, a realidade dos fatos é que nenhum contribuinte, em sã consciência, prefere ter seu capital indisponível, sujeito a toda burocracia da Receita Federal em processos de restituição do que tê-lo aplicado em outro lugar, da forma que melhor entender, com possibilidade de ganhos até mesmo superiores à taxa Selic.
Por essa simples razão, é evidente que a natureza jurídica da taxa Selic é a de juros de mora, de indenização, uma vez que ela apenas recompõe parcela do patrimônio do contribuinte que lhe foi ilegalmente subtraída.
Todo tributo decorre de lei e somente a lei pode estabelecer sua cobrança. Se o contribuinte pagou mais do que a lei determina, sofreu diminuição ilegal em seu patrimônio e o mínimo que se espera é que essa ilegalidade seja reparada com a devida incidência dos juros moratórios cabíveis.
Portanto, se estamos falando de uma indenização pelas perdas e danos sofridos pelo contribuinte em razão da ilegalidade contida no pagamento a maior efetuado e da demora do Tesouro em restituir aquilo que lhe é devido e nunca em uma opção do contribuinte que teria resolvido “aplicar” seu dinheiro pela Selic, nada há como incidir IRPJ e tampouco CSLL sobre a parcela que foi corrigida por esta taxa.
Em vista disso, a exigência de IRPJ e CSLL sobre o montante corrigido pela taxa Selic recebida pelo contribuinte na repetição de indébito ou no levantamento de depósito judicial viola a regra-matriz do imposto sobre a renda fixada na Constituição Federal (artigo 153, III, c/c art. 195, I, “c”), em razão do que é nitidamente inconstitucional e deve ser afastada pelo Supremo.
Fonte: Valor