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O CARF em um jogo de dados

6 de julho, 2019

Circula pelos gabinetes do Ministério da Economia uma proposta de extinção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), ideia defendida pelo Sindicato dos Auditores Fiscais Federais.

Em síntese, as Delegacias Regionais de Julgamento, formadas exclusivamente por auditores fiscais, seriam transformadas em instância única de julgamento, com a implantação de unidades nas capitais e maior abertura para que contribuintes exerçam o direito de defesa. A harmonização da jurisprudência seria feita por um novo órgão, também formado apenas por fiscais.

Como quase todo debate sobre política pública no Brasil, faltam informações para que se possa avaliar com razoável grau de confiança quais seriam os impactos de uma mudança dessa natureza.

Para cada real investido, o Conselho devolveu ao sistema R$ 24 mil revisados e prontos para inscrição em dívida ativa.

A partir de dados coletados em pesquisas realizadas no Insper e no Núcleo de Estudos Fiscais da FGV-SP, em conjunto com Vanessa Canado, Daniel Santiago e Frederico Bastos, algumas ponderações sobre a proposta se revelam ainda mais importantes.

Dos 7.821 recursos julgados pelo Carf em 2016, apenas 6,66% (521) eram recursos de ofício, ou seja, casos superiores a R$ 2,5 milhões que subiram automaticamente para revisão por ter sido vencida a Fazenda. Um número tão baixo de casos favoráveis aos contribuintes em 1ª instância indica que as Delegacias, a despeito da qualidade técnica de seus julgadores, talvez não estejam realizando efetivo controle de legalidade dos autos de infração. Outro dado, em perspectiva comparativa, reforça essa impressão: naquele mesmo ano, 52,4% dos casos julgados pelo Carf foram favoráveis aos contribuintes.

Um aspecto crucial para essa disparidade pode estar nos diferentes referenciais normativos das duas instâncias: enquanto a DRJ julga conforme entendimento da RFB, no Carf o lançamento tributário tem que superar teste de adequação a um sistema normativo muito mais amplo: leis, tratados e acordos internacionais.

O Carf recebe cerca de R$ 700 bilhões em processos por ano, custa R$ 13,5 milhões e julgou R$ 323 bilhões de créditos tributários em 2017. Para cada real investido, o Conselho devolveu ao sistema R$ 24 mil revisados e prontos para inscrição em dívida ativa. Replicar a estrutura do Carf às 27 capitais geraria alto custo em meio a um cenário de grave crise fiscal.

Mas o gasto transcende a mera multiplicação de estruturas administrativas. Sem o Carf, o controle de legalidade mais amplo será transferido ao já assoberbado Judiciário, somando demandas aos atuais 7 milhões de novos processos tributários e previdenciários por ano, R$ 2,1 trilhões em execuções fiscais, e às teses nos tribunais superiores que podem impactar o orçamento federal em R$ 1,5 trilhão, segundo a LDO.

Pior: diferentemente da esfera administrativa, no Judiciário há regras que impõem custas processuais e despesas com garantias, inicialmente suportadas pelos contribuintes, mas com a possibilidade de inversão do encargo ao Fisco, conforme artigos 27 da LINDB e 82, §2º e 776 do CPC. Além disso, o processo judicial pressupõe a condenação em honorários de sucumbência, calculados conforme artigo 85 do CPC, e que poderão ser suportados pelo Fisco nos mesmos patamares historicamente impostos aos contribuintes (não mais apenas pelo critério de equidade, que permitia ao Fisco litigar sem risco).

Temos um sistema tributário que gera insegurança, complexidade e litigiosidade. Pesquisas realizadas nos últimos anos apontam o Brasil como o país mais complexo entre 100 jurisdições avaliadas pelas universidades alemãs LMU Munich e Universität Paderborn, e classificado em 184º lugar, entre 190 países, no ranking do Banco Mundial que mede a dificuldade para pagar impostos. O contencioso fiscal administrativo equivale a cerca de 12% do PIB brasileiro, comparado à média de 0,2% em outros 17 países.

Em duro acórdão recente (1105/19), o TCU criticou a ausência de análise de impacto regulatório das normas tributárias, antes e depois de sua edição, e recomendou que o Executivo federal adote medidas efetivas para reduzir tanta complexidade, como atender ao disposto no artigo 212 do CTN, que determina a consolidação anual da legislação tributária vigente, e realizar auditoria para identificar o porquê da edição de tantas normas (somente em 2017 foram mais de 3.000).

Os dados são superlativos. Em meio ao caos, contribuintes devem interpretar, apurar e declarar os tributos que entendem devidos, sujeitos à revisão de seus atos pelos próximos cinco anos. É a “maldição do lançamento por homologação”, na feliz expressão de Eurico de Santi.

Não temos, a exemplo de países pesquisados, mecanismos de controle prévio de legalidade dos autos de infração. Assim, erros de compreensão de informações prestadas pelo contribuinte e falhas em cruzamentos de dados acabam sendo reconhecidos somente quando já instaurado o litígio.

O Carf desponta, então, como a primeira arena em que a voz dos contribuintes é formalmente considerada na constituição do crédito tributário, com o exercício amplo do direito de defesa, entrega de memoriais e realização de audiências e sustentações orais. Diferentes perspectivas e experiências profissionais convivem nas suas salas de julgamento e, nesse ambiente de cooperação paritária, convergências são encontradas. Desafoga o Judiciário, lança luz ao Fisco e aos contribuintes sobre a interpretação do sistema tributário e gera segurança jurídica.

A sorte do Carf depende de dados. Não desses que se usa em jogos de tabuleiros, mas dados colhidos, tratados e debatidos abertamente com a sociedade.

FONTE: Valor Econômico

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